sexta-feira, 28 de maio de 2010

ESTÁ DE VOLTA: DO CLÁSSICO "A HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIA" DE JORGE LUIS BORGES - IX CONTO - HOMEM DA ESQUINA ROSADA

Vocês pensaram que eu desisti, não, de maneira nenhuma. Curtam mais este maravilhoso conto de Jorge Luis Borges, o mestre da narrativa curta.

HOMEM DA ESQUINA ROSADA

Para Enrique Amorim

(qualquer semelhança é mera coincidência)

Logo para mim, falar do finado Francisco Real. Cheguei a conhecê-lo, embora não fosse deste bairro – seus domínios eram mais para o Norte, pelos lados da laguna de Guadalupe e da Bateria. Estive com ele não mais de três vezes, e todas numa única noite, mas é noite que não esquecerei: foi quando a Lujanera veio, sem mais, dormir em meu rancho, e Rosendo Juárez deixou o Arrogo para não voltar. Claro que lhes falta a devida experiência para reconhecer esse nome, mas Rosendo Juárez, o Batedor, era dos que falavam mais alto em Villa Santa Rita. Rapaz afamado por ser bom na faca, era um dos homens de Dom Nicolás Paredes, que era homem de Morel. Costumava aparecer muito alinhado nos bordéis, num cavalo escuro enfeitado de prata. Homens e cachorros o respeitavam e também as chinas; ninguém ignorava que matara dois; usava chapéu alto, de aba estreita, sobre a cabeleira oleosa. Como se costuma dizer, a sorte o tratava bem. Nós, os rapazes da Villa, o imitávamos até no modo de cuspir. Entretanto, uma noite revelou para nós a verdadeira condição de Rosendo.

Parece fantasia, mas a história dessa estranha noite começou com uma soberba jardineira de rodas vermelhas, carregada de homens, aos trancos por esses becos de barro duro, entre fornos de tijolos e buracos, com dois deles de preto tocando guitarra e fazendo barulho, e o outro na boléia a fustigar os cachorros soltos que atrapalhavam o tordilho, e mais um sujeito de poncho, silencioso no meio, e esse era o tão famoso Curraleiro, que ia brigar e matar. A noite era uma bênção de tão fresca. Dois deles iam sobre a capota arriada, como se a solidão fosse um corso. Esse foi o primeiro acontecimento dos tantos que houve, mas só depois ficamos sabendo. Nós, os rapazes, estávamos desde cedo no salão de Júlia, um galpão com telhas de zinco, entre a estrada de Gauna e o arroio Maldanado. Era um lugar que se podia ver de longe, graças à luz que o desavergonhado lampião espalhava ao redor e também pelo barulho. Júlia, embora de cor humilde, era consciente e formal, tanto que não faltavam músicos nem boa bebida nem companheiras resistentes para o baile. Mas a Lujanera, que era a mulher de Rosendo, ganhava longe de todas. Ela morreu, senhor, e digo que passo anos sem pensar nela, mas precisava vê-la naqueles bons tempos. Ninguém se cansava de olhar para a Lujanera.

A bebida, a milonga, o mulherio, um palavrão condescendente da boca de Rosendo, uma palmada dele em meu queixo, que eu tentava interpretar como amizade – a verdade e que me sentia feliz. Arrumei uma parceira que me acompanhava muito bem, como se adivinhasse minhas intenções. O tango fazia o que bem entendia conosco; estimulava-nos e perdia-nos e nos botava em ordem e nos fazia reencontrar. Nessa diversão, os homens estavam como num sonho, quando de repente a música pareceu crescer: é que a ela já se misturava a música dos guitarristas do carro, cada vez mais próximo. Depois, a brisa que a trouxe levou-a para outro rumo, e voltei a dar atenção a meu corpo e ao de minha companheira e às conversas do baile. Mais tarde, bateram à porta com autoridade, uma batida e uma voz. Em seguida, um silêncio geral, um empurrão muito forte na porta e o homem já estava dentro. O homem se parecia com a voz.

Para nós, não era ainda Francisco Real, mas sim um sujeito alto, robusto, todo vestido de preto, com uma manta branco-amarelada jogada sobre o ombro. Lembro que tinha cara de índio, angulosa.

Ao abrir-se, a porta bateu em mim. Não mais que por atordoamento, atirei-me sobre o homem e apliquei-lhe na facha um murro com a esquerda, enquanto com a direita puxava a faca afiada que sempre trazia na cava do colete, junto ao sovaco esquerdo. Ia durar pouco minha precipitação. O homem, para se firmar, esticou os braços e me afastou, como que se despedindo de um estorvo. Deixou-me escondido atrás, ainda a mão em baixo do paletó, sobre a arma inútil. Continuou como o maioral. Seguiu sempre mais alto que qualquer um dos que ia desapartando, sempre como se não visse nada nem ninguém. Os primeiros – puro olhar italianado – abriram-se em leque, apressados. E no grupo seguinte o Inglês já o esperava e antes de sentir no ombro a mão do forasteiro, deitou-lhe com uma pranchada que tinha pronto. Foi só ver aquela pranchada e todos já se esfumaram. O salão tinha muitas varas de fundo, e o carregaram como um cristo, quase duma ponta a outra, com empurrões, vaias e cusparadas. Primeiro deram-lhe socos, depois, vendo que não se defendia dos golpes, só tapas com a mão aberta ou com a franja inofensiva da manta, como se estivessem rindo dele ou o reservando para Rosendo, que não se mexera da parede do fundo, onde estava encostado, quieto. Fumava com pressa seu cigarro, como se entendesse o que depois fomos ver claramente. O Curraleiro foi empurrado até ele, firme e ensangüentado, envolvido na assuada da ralé estúpida. Vaiado, chicoteado, cuspido, só abriu a boca quando se defrontou com Rosendo. Então olhou para ele, limpou o rosto com o antebraço e disse o seguinte:

– Eu sou Francisco Real, um homem do Norte. Eu sou Francisco Real, que chamam de Curraleiro. Permiti a esses infelizes que me botassem a mão porque o que estou procurando é um homem. Andam por aí uns boateiros dizendo que por estes descampados existe um sujeito com fama de ser bom na faca e de ser durão, um tal Batedor. Quero me encontrar com ele para que me ensine, a mim que não sou ninguém, o que é um homem corajoso.

Disse isso e não tirou os olhos do outro. Na mão direita agora já reluzia uma faca que com certeza tinha trazido na manga. Em volta, os que o haviam empurrado foram abrindo caminho e todos nós olhávamos para os dois, num grande silêncio. Até os beiços do mulato cego que tocava violino também se abriram.

Nisso, ouço que se mexem lá atrás e vejo na soleira da porta seis ou sete homens, que deviam ser capangas do Curraleiro. O mais velho, um homem com ar de camponês, curtido, de bigode grisalho, adiantou-se e, deslumbrado com tanto mulherio e tanta luz, descobriu-se com respeito. Os outros vigiavam, prontos para entrar em ação se o jogo não fosse limpo.

Que é que acontecia com Rosendo que não expulsava a pontapés aquele fanfarrão? Continuava calado, sem levantar os olhos. Não sei se cuspiu o cigarro ou se o deixou cair da boca. Por fim, conseguiu balbuciar algumas palavras, mas tão baixo que nada escutamos na outra ponta do salão. Francisco Real tornou a desafiá-lo e ele continuou a negar-se. Então, o mais jovem dos forasteiros assobiou. A Lujanera olhou para ele com desprezo e foi andando, com a cabeleira solta nas costas, entre homens e chinas. Chegou-se a seu homem, pôs-lhe a mão no peito, tirou a faca desembainhada e deu-a a ele com estas palavras:

– Rosendo, acho que estás precisando disto.

Na altura do teto havia uma espécie de janela comprida que dava para o arroio. Com as duas mãos, Rosendo recebeu a faca e a encarou como se não reconhecesse. Jogou-se de repente para trás e a faca voou direto e perdeu-se lá fora, no Maldonado. Senti uma espécie de frio.

– Não te meto a faca de nojo – disse o outro, e levantou a mão para castigá-lo. Então a Lujanera agarrou-se nele, passou-lhe os braços pelo pescoço, olhou-o com aqueles olhos e disse com raiva:

– Deixa esse aí que fez a gente pensar que era homem.

Francisco Real ficou confuso por um momento e depois abraçou a mulher, como se fosse para sempre, e ordenou aos músicos que tocassem tango e milonga e aos outros da festa que dançássemos. A milonga correu como incêndio de ponta a ponta. Real dançava muito grave, mas sem nenhum brilho, já dono daquela mulher. Chegaram até a porta e ele gritou:

– Abram cancha, gente, que eu a levo meio dormindo.

Disse isso e saíram de rostos colados, no rodopio do tango, como se os deixasse perdidos o tango.

Devo ter ficado vermelho de vergonha. Dei umas voltinhas com uma das mulheres e larguei-a de repente. Disse que era por causa do calor e do aperto e fui ladeando a parede até sair. Noite linda – para quem? Na curva do beco estava a jardineira, e as duas guitarras empertigadas no assento, como cristãos. Fiquei chateado de ver que descuidavam delas dessa forma, como se a gente não servisse nem para tomar conta das guitarras mais ordinárias. Fiquei com raiva ao perceber que não éramos ninguém. Atirei numa poça o cravo que tinha na orelha e fiquei algum tempo olhando para ele, para não pensar em mais nada. Quisera estar duma vez no dia seguinte, queria sair dessa noite. Nisso me deram uma cotovelada que foi quase um alívio. Era Rosendo, escapulindo do bairro, sozinho.

– Você está sempre atrapalhando, idiota – resmungou ao passar, não sei se querendo desabafar ou se alheio a tudo. Tomou o lado mais escuro, o do Maldonado; não tornei mais a vê-lo.

Fiquei olhando para coisas da vida inteira – céu de nunca acabar, o arroio teimoso lá embaixo, um cavalo adormecido, – beco de terra batida, os fornos – e pensei que eu era não mais que qualquer capim daquelas bandas, criado entre flores de brejo e ossadas. Que poderia sair daquele lixo além de nós, gritalhões mas covardes para o castigo, conversadores e impulsivos, não mais que isso? Senti depois que não; quanto mais apanha, mais o bairro tem obrigação de ser valentão. Lixo? A milonga continuava endoidecendo e aturdindo pelas casas, e trazia cheiro de madressilvas o vento. Noite inutilmente linda. Era tanta estrela que a gente ficava zonzo só de olhar, umas sobre as outras. Eu me esforçava em pensar que o assunto não me dizia respeito, mas a covardia de Rosendo e a coragem insuportável do forasteiro não me deixavam sossegado. Até uma mulher o homem alto tinha arrumado para aquela noite. Para essa e para muitas outras, pensei, e talvez para todas, porque a Lujanera era coisa séria. Sabe Deus que lado tomaram. Mas muito longe não deviam estar. Talvez os dois já estivessem até se amassando por aí em qualquer sarjeta.

Quando consegui voltar, o baile continuava como se nada tivesse ocorrido.

Disfarçadamente me enfiei no meio do pessoal e vi que alguns dos nossos tinham debandado e que os do Norte tangueavam junto com os outros. Cotovelaços e empurrões não havia, mas sim receio e decência. A música parecia sonolenta, as mulheres que tangueavam com os do Norte não abriam a boca.

Eu esperava alguma coisa, mas não o que aconteceu.

Lá fora, ouvimos uma mulher que chorava e depois a voz que já conhecíamos, mas serena, quase serena demais, como se já não fosse a voz de ninguém, dizendo para ela:

– Entra, filha. – E o choro continuou. Depois, como se começasse a desesperar-se, a voz prosseguiu:

– Abre, estou dizendo, abre, sua nojenta, abre, sua cadela! – Aí a trêmula porta se abriu e a Lujanera entrou, sozinha. Entrou mandada, como se alguém a viesse empurrando.

– Está sendo mandada por uma assombração – disse o inglês.

– Por um morto, amigo – disse então o Curraleiro. O rosto parecia o de um bêbado. Entrou e na cancha que lhe abrimos todos nós deu, como antes, alguns passos titubeantes – erguido, sem ver – e desabou feito poste. Um dos que tinham vindo com ele deitou-o de costas e ajeitou o pequeno poncho como travesseiro. Essas ajudas encheram o homem de sangue. Vimos então que tinha uma enorme ferida no peito; o sangue o encharcava e enegrecia um lenço vermelho que antes eu não havia notado porque estava coberto pela manta. Para um primeiro curativo, uma das mulheres trouxe aguardente e uns panos queimados. O homem não estava para dar explicações. A Lujanera o olhava como se estivesse perdida, com os braços caídos. Todos a interrogavam em silêncio e, por fim, ela conseguiu falar. Disse que depois de sair com o Curraleiro foram a um pequeno campo e nisso surge um desconhecido que o desafia como um desesperado a brigar e lhe dá aquela punhalada, e ela jura que não sabe quem é e que não é o Rosendo. Quem ia acreditar nela?

O homem morria a nossos pés. Pensei que o pulso de quem o liquidou não tinha tremido. Mas o homem era duro. Quando caiu, Júlia estava cevando mate e a cuia deu uma volta inteira e chegou a minha mão antes que ele morresse. "Cubram meu rosto", disse devagar, quando não pôde mais. Só lhe restava o orgulho e não podia permitir que bisbilhotassem as marcas da agonia. Alguém pôs em cima dele o chapéu preto, de copa altíssima. Morreu debaixo do chapéu, sem nenhuma queixa. Quando o peito estendido deixou de subir e descer, o pessoal se animou a descobri-lo. Tinha aquele ar cansado dos defuntos; era um dos homens de maior coragem que houve naquele tempo, da Bateria até o Sul; quando o vi morto e sem fala, perdi meu ódio.

– Para morrer não se precisa mais que estar vivo – disse uma das mulheres do grupo.

– Tanta soberba e agora só serve para juntar moscas – falou outra, pensativa.

Então os do Norte começaram a conversar baixinho entre eles e depois dois repetiram alto, ao mesmo tempo:

– Foi a mulher que o matou.

Um dos homens perguntou, cara a cara, se não tinha sido ela, e todos a cercaram. Eu me esqueci de que devia ser prudente e fui para junto deles como um raio. De afobado, quase desembainhei a faca. Senti que muitos me olhavam, para não dizer todos eles. Zombando, falei:

– Olhem as mãos desta mulher: que pulso ou que coração pode ter ela para cravar uma punhalada?

Acrescentei, com jeito aparentemente entediado do valentão:

– Quem podia imaginar que o falecido, que dizem ter sido bravo em sua terra, fosse acabar dum jeito tão bruto e num lugar totalmente morto como este, onde nada acontece, a não ser quando aparece por aqui algum sujeito de fora para distrair a gente e que depois serve apenas para a gente cuspir em cima?

O corpo não pediu surra a ninguém.

Nisso começou a crescer na solidão um barulho de cavalos. Era a polícia. Uns mais e outros menos, todos teriam suas razões para não querer nada com ela, pois decidiram que o melhor era jogar o morto no arroio. Vocês devem estar lembrados da janela comprida pela qual passou o punhal, brilhando. Foi por aí que passou depois o homem de preto. Ergueram-no, e de quantos centavos e miudezas tinha o aliviaram essas mãos, e alguém lhe decepou um dedo para deslizar o anel. Aproveitadores, senhores, que assim criavam coragem diante de um pobre defunto indefeso, depois que alguém mais homem o liquidou. Um empurrão e a água rápida e teimosa o levou. Para que não boiasse, não sei se lhe arrancaram as vísceras, pois preferi não olhar. O sujeito de bigode grisalho não me tirava os olhos. A Lujanera aproveitou a confusão para sair.

Quando os da lei fizeram o serviço, o baile andava meio animado. O cego do violino sabia tocar umas habaneras das que já não se ouvem mais. Lá fora estava querendo clarear. Umas estacas de nandubay sobre uma colina pareciam soltas, pois o arame fininho da cerca não podia ser visto assim tão cedo.

Voltei tranqüilo para meu rancho, distante dali umas três quadras. Na janela brilhava uma luzinha, que se apagou logo em seguida. É claro que tive pressa em chegar, quando me dei conta daquilo. Então, Borges, tornei a sacar a faca curta e afiada que eu sempre trazia aqui, no colete, perto do sovaco esquerdo, e examinei-a mais uma vez, devagarinho, e ela estava como nova, inocente, e não restava nenhum pingo de sangue.


Valeu. Bom fim de semana.

Flavio Luiz Sartori


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