quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

ESTA DE VOLTA A “NOVELA LITERÁRIA” NO BLOG: “A HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIA” DE JORGE LUIS BORGES

Vocês se lembram lancei aqui a idéia de publicar contos curtos e comecei pelo maravilhoso livro de Jorge Luis Borges: A História Universal da Infâmia, com o conto O ATROZ REDENTOR LAZARUS MORELL. Agora, continuo a série de contos com o segundo conto do livro:

O IMPOSTOR INVEROSSÍMIL TOM CASTRO

Dou-lhe esse nome porque com esse nome o conheceram pelas ruas e casas de Talcahuano, de Santiago do Chile e de Valparaíso, por volta de 185O, e é justo que o assuma outra vez, agora que retorna a estas terras – ainda que na qualidade de mero fantasma e de passatempo de sábado. O registro civil de Wapping chama-o Arthur Orton e o inscreve na data de 7 de junho de 1834. Sabemos que era filho de um açougueiro, que sua infância conheceu a miséria insípida dos bairros pobres de Londres e que sentiu o chamado do mar. O fato não é insólito. Run away to sea, fugir para o mar, é a tradicional e britânica ruptura da autoridade paterna, a iniciação heróica. A geografia recomenda-a, e também a Escritura (Salmos, 1O6): "Os que descem em barcos ao mar, os que comerciam nas grandes águas, esses vêem as obras de Deus e suas maravilhas no abismo". Orton fugiu de seu deplorável subúrbio de fuliginoso rosa e foi ao mar num navio e contemplou com habitual decepção o Cruzeiro do Sul, e desertou no porto de Valparaíso. Era uma pessoa de sossegada idiotia. Logicamente poderia (e deveria) ter morrido de fome, mas sua confusa jovialidade, seu permanente sorriso e sua mansidão infinita conciliaram-lhe o favor de certa família Castro, cujo nome adotou. Desse episódio sul-americano não restam pegadas, mas sua gratidão não decaiu, posto que em 1861 reaparece na Austrália sempre com esse nome, Tom Castro. Em Sidney conheceu um tal Bogle, criado negro. Bogle, sem ser bonito, tinha esse ar repousado c monumental, essa solidez meio de obra de engenharia, própria do homem de cor entrado em anos, em carnes e em autoridade. Tinha uma segunda condição, que determinados manuais de etnologia negam a sua raça: a ocorrência genial. Logo veremos a prova. Era um varão morigerado e decente, com os antigos apetites africanos muito corrigidos pelo uso e abuso do calvinismo. Excetuando-se a visita do deus (que descreveremos depois), era absolutamente normal, sem outra irregularidade que um pudico e vasto terror que o detinha nas esquinas, receando a leste, oeste, sul e norte, o violento veículo que daria fim a seus dias.

Esta metáfora serve-me para lembrar ao leitor que as presentes biografias infames apareceram no suplemento de sábado de um vespertino.

Orton viu-o um entardecer numa desmantelada esquina de Sidney criando coragem para sortear a imaginária morte. Depois de fixá-lo longamente, ofereceu-lhe o braço e ambos atravessaram assombrados a rua inofensiva. Desde esse instante de um entardecer já defunto, estabeleceu-se um protetorado: o do negro inseguro e monumental sobre o obeso imbecil de Wapping. Em setembro de 1865, ambos leram num jornal local um desconsolado anúncio.

O IDOLATRADO HOMEM MORTO

Nos últimos dias de abril de 1854 (no tempo em que Orton provocava as efusões da hospitalidade chilena, ampla como seus pátios), naufragou nas costas do Atlântico o vapor Mermaid, procedente do Rio de Janeiro, rumo a Liverpool. Entre os que pereceram estava Roger Charles Tichborne, militar inglês criado na França, morgado de uma das principais famílias católicas cia Inglaterra. Parece inverossímil, mas a morte desse jovem afrancesado, que falava inglês com o mais fino sotaque de Paris e despertava esse incomparável rancor que só causam a inteligência, a graça e a pedanteria francesas, foi um acontecimento transcendental no destino de Orton, que jamais o vira. Lady Tichborne, a horrorizada mãe de Roger, recusou-se a acreditar na morte dele e publicou desconsolados anúncios nos periódicos de mais ampla circulação. Um desses anúncios caiu nas macias mãos funerárias do negro Bogle, que concebeu um projeto genial.

AS VIRTUDES DA DISPARIDADE

Tichborne era um esbelto cavalheiro de ar retraído, traços agudos, tez morena, cabelo negro muito liso, os olhos vivos e a palavra de uma precisão já incômoda. Orton era um exuberante tosco, de vasto abdômen, traços de infinita vagueia, cútis puxando para o sardento, cabelo encaracolado castanho, olhos entorpecidos, e conversação ausente e apagada. Bogle inventou que o dever de Orton era embarcar no primeiro vapor para a Europa e satisfazer a esperança de Lady Tichborne, declarando ser seu filho. O projeto era de insensata perspicácia. Proponho um fácil exemplo. Se algum impostor em 1914 tivesse pretendido passar-se pelo Imperador da Alemanha, as primeiras coisas que pensaria falsificar teriam sido os bigodes ascendentes, o braço morto, o cenho autoritário, a capa cinza, o ilustre peito condecorado e o alto elmo. Bogle era mais sutil: teria apresentado um Kaiser glabro, alheio a atributos militares e águias honrosas, o braço esquerdo em indubitável estado de saúde. Não necessitamos de metáfora; consta-nos que apresentou um Tichborne balofo, com sorriso amável de imbecil, cabelo castanho e uma inalterável ignorância do idioma francês. Bogle sabia que um fac-símile perfeito do desejado Roger Charles Tichborne era de impossível obtenção. Sabia também que todas as similitudes conseguidas não fariam outra coisa senão destacar certas diferenças inevitáveis. Renunciou, pois, a toda semelhança. Intuiu que a enorme inépcia da pretensão seria uma convincente prova de que não se tratava de uma fraude, que jamais alguém ousaria descobrir desse modo flagrante os mais simples traços convincentes. Não se pode esquecer também a colaboração todo-poderosa do tempo: catorze anos de hemisfério austral e de acaso podem mudar um homem.

Outra razão fundamental: os repetidos e insensatos anúncios de Lady Tichborne demonstravam sua absoluta segurança de que Roger Charles não havia morrido, sua vontade de reconhecê-lo.

O ENCONTRO

Tom Castro, sempre serviçal, escreveu a Lady Tichborne– Para fundamentar sua identidade invocou a prova fidedigna de duas pintas, situadas no mamilo esquerdo, e aquele episódio de sua infância, tão aflitivo mas por isso mesmo tão memorável, quando foi atacado por um enxame de abelhas. A comunicação era breve e, à maneira de Tom Castro e de Bogle, prescindia de escrúpulos ortográficos. Na imponente solidão de um hotel de Paris, a dama leu-a e releu-a com lágrimas felizes, e em poucos dias encontrou as recordações que lhe pedia o filho.

Aos dezesseis de janeiro de 1867, Roger Charles Tichborne anunciou-se nesse hotel. Precedeu-o seu respeitoso criado, Ebenezer Bogle. O dia de inverno era de muito sol; os olhos fatigados de Lady Tichborne estavam velados pelo pranto. O negro abriu de par a par as janelas. A luz compôs a máscara: a mãe reconheceu o filho pródigo e franqueou-lhe seu abraço. Agora que deveras o possuía, podia prescindir do diário e das cartas que ele lhe mandara do Brasil: meros reflexos adorados que alimentaram sua solidão de catorze anos soturnos. Devolveu-as com orgulho: nem uma faltava.

Bogle sorriu discretamente: já tinha onde se documentar, o plácido fantasma de Roger Charles.

AD MAJOREM DEI GLORIAM

O reconhecimento ditoso – que parece cumprir uma tradição das tragédias clássicas – devia coroar esta história, deixando três felicidades asseguradas ou, pelo menos, prováveis: a da mãe verdadeira, a do filho apócrifo e tolerante, a do conspirador recompensado pela apoteose providencial de seu esforço. O Destino (tal é o nome que aplicamos à infinita operação incessante de milhares de causas entrelaçadas) não resolveu assim. Lady Tichborne morreu em 187O e os parentes iniciaram uma questão litigiosa contra Arthur Orton por usurpação de estado civil. Desprovidos de lágrimas e de pesar, mas não de cobiça, jamais acreditaram no obeso e quase analfabeto filho pródigo que tão intempestivamente ressurgia da Austrália. Orton contava com o apoio dos inumeráveis credores, que tinham decidido que ele era de fato Tichborne, para que pudesse pagar-lhes.

Contava ainda com a amizade do advogado da família, Edward Hopkins, e com a do antiquário Francis J. Baigent. Isso não bastava, contudo. Bogle pensou que para ganhar a partida era imprescindível o favor de uma forte corrente popular. Pediu a cartola e o distinto guarda-chuva e foi buscar inspiração nas circunspectas ruas de Londres. Era ao entardecer: Bogle vagou até que uma lua cor de mel se duplicou na água retangular das fontes públicas. O deus visitou-o. Bogle chamou uma carruagem e fez-se conduzir ao apartamento do antiquário Baigent. Este mandou uma longa carta ao Times, na qual assegurava ser o suposto Tichborne um descarado impostor. Assinava-a o padre Goudron, da Sociedade de Jesus. Outras denúncias igualmente papistas se sucederam. O efeito foi imediato: as boas almas não deixaram de adivinhar que Sir Roger Charles era alvo de um complô abominável dos jesuítas.

A CARRUAGEM

Cento e noventa dias durou o processo. Cerca de cem testemunhas declararam que o acusado era Tichborne – entre eles, quatro companheiros de armas do 6° Regimento de Dragões. Seus partidários não deixavam de repetir que não era um impostor, pois, se o fosse, teria procurado arremedar os retratos juvenis de seu modelo. Além disso, Lady Tichborne o havia reconhecido, e é evidente que mãe não se engana. Tudo corria bem, ou mais ou menos bem, até que uma antiga amada de Orton compareceu ante o tribunal para depor. Bogle não se alterou com essa pérfida manobra dos "parentes"; pediu chapéu e guarda-chuva e foi implorar uma terceira iluminação pelas circunspectas ruas de Londres. Não saberemos nunca se a encontrou. Pouco antes de chegar a Primrose Hill, atingiu-o o terrível veículo que do fundo das idades o perseguia. Bogle viu-o chegar, deixou escapar um grito, porém não atinou com a salvação. Foi projetado com violência contra as pedras. Os traiçoeiros cascos do pangaré partiram-lhe o crânio.

O ESPECTRO

Tom Castro era o fantasma de Tichborne, mas um pobre fantasma habitado pelo gênio de Bogle. Quando lhe disseram que este havia morrido, aniquilou-se. Continuou mentindo, porém com escasso entusiasmo e com disparatadas contradições. Era fácil prever o fim.

Aos 27 de fevereiro de 1874, Arthur Orton, também conhecido como Tom Castro, foi condenado a catorze anos de trabalhos forçados. No cárcere, soube fazer-se querer; era seu ofício. O comportamento exemplar valeu-lhe uma redução de pena de quatro anos. Quando essa hospitalidade final (a da prisão) lhe permitiu, excursionou pelas aldeias e pelos centros populosos do Reino Unido, a pronunciar pequenas conferências nas quais declarava sua inocência ou afirmava sua culpa. Nele, a modéstia e o desejo de agradar eram tão duradouros que muitas noites começou pela defesa e acabou pela confissão, sempre a serviço das inclinações do público.

Aos 2 de abril de 1898, morreu.

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