sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

DO CLÁSSICO "A HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIA" DE JORGE LUIS BORGES - VIII CONTO: O TINTUREIRO MASCARADO HAKIM DE MERV

UM CONTO ATUAL, SE COMPARARMOS A TRAJETÓRIA DO PERSONAGEM HAKIM DE MERV COM O DESTINO DO GOVERNADOR ARRUDA.

O TINTUREIRO MASCARADO HAKIM DE MERV

A Angélica Ocampo

Se não me engano, ás fontes originais de informação acerca de Al Moqanna, o Profeta Velado (ou mais estritamente, Mascarado) do Kurassan ( No original em castelhano: Jorasán), reduzem-se a quatro: a) os excertos da História dos Califas, conservados por Baladhuri; b) o Manual do Gigante ou Livro da Precisão e da Revisão, do historiador oficial dos abássidas, Ibn abi Tair Tarfur; c) o códice árabe intitulado A Aniquilação da Rosa, em que se refutaram as heresias abomináveis da Rosa Obscura ou Rosa Escondida, que era o livro canônico do Profeta; d) umas moedas sem efígie desenterradas pelo engenheiro Andrusov, num desmonte da Estrada de Ferro Transcaspiana. Essas moedas foram depositadas no Gabinete Numismático de Teerã e contêm dísticos persas que resumem ou corrigem certas passagens da Aniquilação. A Rosa original foi perdida, uma vez que o manuscrito encontrado em 1889 e publicado não sem leviandade pelo Morgenländisches Archiv foi declarado apócrifo por Horn e em seguida por Sir Percy Sykes.

A fama ocidental do Profeta deve-se a um loquaz poema de Moore, sobrecarregado de saudades e suspiros de conspirador irlandês.

A PÚRPURA ESCARLATE

Aos 12O anos da Hégira e 736 da Cruz, o homem Hakim, que os homens daquele tempo e daquele espaço apelidaram logo de O Velado, nasceu no Turquestão. Sua pátria foi a antiga cidade de Merv, cujos jardins e vinhedos e prados olham tristemente o deserto. O meio-dia é branco e deslumbrante, quando não o obscurecem nuvens de pó que sufocam os homens e deixam uma lâmina esbranquiçada nas cepas escuras.

Hakim criou-se nessa fatigada cidade. Sabemos que um irmão de seu pai adestrou-o no ofício de tintureiro: arte de ímpios, de falsários e de inconstantes, que inspirou os primeiros anátemas de sua carreira pródiga. "Meu rosto é de ouro (revela em uma página famosa da Aniquilação), porém macerei a púrpura e submergi na segunda noite a lã sem cardar e saturei na terceira a lã preparada, e os imperadores das ilhas ainda se disputam essa roupa sangrenta. Assim pequei nos anos da juventude e transtornei as verdadeiras cores das criaturas. O Anjo dizia-me que os carneiros não eram da cor dos tigres, Satã dizia-me que o Poderoso queria que o fossem e se valia de minha astúcia e de minha púrpura. Agora sei que o Anjo e Satã erravam a verdade e que toda cor é abominável."

No ano 146 da Hégira, Hakim desapareceu de sua pátria. Encontraram destruídas as caldeiras e cubas de imersão, assim como um alfanje de Xiraz e um espelho de bronze.

O TOURO

Ao final da lua de xabã no ano de 158, o ar do deserto estava muito claro e os homens olhavam o poente em busca da lua de ramadã, que promove a mortificação e o jejum. Eram escravos, esmoleres, vendilhões, ladrões de camelo e açougueiros. Gravemente sentados na terra, aguardavam o sinal do portão de uma pousada de caravanas no caminho de Merv. Olhavam o ocaso, e a cor do ocaso era a da areia.

Do fundo do deserto vertiginoso (cujo sol produz a febre, assim como a lua produz o pasmo), viram adiantaram-se três figuras, que lhe pareciam altíssimas. Eram humanas as três, mas a do meio tinha cabeça de touro. Quando chegaram mais perto, viram que este usava máscara e os outros dois eram cegos.

Alguém (como nos contos das Mil e Uma Noites) indagou a razão dessa maravilha. "Estão cegos" – declarou o homem da máscara – "porque viram meu rosto".

O LEOPARDO

O cronista dos abássidas conta que o homem do deserto (cuja voz era singularmente doce, ou assim lhes pareceu por diferir da brutalidade de sua máscara) disse-lhes que estavam aguardando o signo de um mês de penitência, mas que ele pregava um signo superior: o de toda uma vida penitencia) e uma noite injuriada. Disse-lhes que era Hakim, filho de Osmã, e que no ano de 146 da Hégira havia penetrado um homem em sua casa e logo que se purificara, feitas as orações, havia cortado a cabeça dele, com um alfanje, e a levara até o céu. Sobre a mão direita do homem (que era o Anjo Gabriel) sua cabeça tinha estado ante o Senhor, que lhe deu a missão de profetizar, e lhe inculcou palavras tão antigas que sua repetição queimava as bocas, e lhe infundiu um glorioso esplendor, que os olhos mortais não toleravam. Tal era a justificativa da Máscara. Quando todos os homens da terra professassem a nova lei, o Rosto lhes seria descoberto, e eles poderiam adorá-lo sem risco – como os anjos já o adoravam. Proclamada sua comissão, Hakim exortou-os a uma guerra santa – um djehad – e a seu conveniente martírio.

Os escravos, mendigos, pequenos negociantes, ladrões de camelos e açougueiros negaram-lhe sua fé: uma voz gritou bruxo e outra, impostor.

Alguém havia trazido um leopardo – talvez um exemplar dessa raça esbelta e sangrenta que os monteiros persas amestram. O certo é que rompeu sua prisão. Salvos o profeta mascarado e os dois acólitos, as pessoas atropelaram-se para fugir. Quando voltaram, a fera havia cegado. Ante os olhos luminosos e mortos, os homens adoraram Hakim e confessaram sua virtude sobrenatural.

O PROFETA VELADO

O historiador oficial dos abássidas narra sem maior entusiasmo os progressos de Hakim, o Velado, no Kurassan. Essa província – muito comovida pela desventura e crucificação de seu mais famoso chefe – abraçou com desesperado fervor a doutrina do Rosto Resplandecente e lhe tributava seu sangue e seu ouro. (Hakim, já então, descartou sua efígie brutal por um quádruplo véu de seda branca, recamado de pedras. A cor emblemática dos Banu Abbás era o negro; Hakim escolheu a cor branca – a mais contraditória – para o Véu Resguardados, os pendões e os turbantes.) A campanha iniciou-se bem. É verdade que no Livro da Precisão as bandeiras do Califa são em todo lugar vitoriosas, mas como o resultado mais freqüente dessas vitórias é a destituição de generais e o abandono de castelos inexpugnáveis, o avisado leitor sabe a que se ater. Ao final da lua de rejeb do ano 161, a famosa cidade de Nixapur abriu suas portas de metal ao Mascarado; em princípios de 162, a de Astarabad. A atuação militar de Hakim (como a de outro mais venturoso Profeta) reduziu-se à prece em voz de tenor, mas elevada à divindade do alto dorso de um camelo avermelhado, no coração agitado das batalhas. A seu redor silvavam as flechas, sem que jamais o ferissem. Parecia procurar o perigo: na noite que uns detestáveis leprosos rondaram seu palácio, ordenou-lhes comparecer a sua presença, beijou-os e lhes ofereceu prata e ouro.

Delegava as fadigas do governo a seis ou sete adeptos. Era estudioso da meditação e da paz: um harém de 114 mulheres cegas tratava de aplacar as necessidades de seu corpo divino.

OS ESPELHOS ABOMINÁVEIS

Sempre que suas palavras não invalidem a fé ortodoxa, o Islã tolera a aparição de amigos confidenciais de Deus, por indiscretos ou ameaçadores que sejam. O Profeta, talvez, não tivesse desprezado os favores desse desdém, mas seus partidários, suas vitórias e a cólera pública do Califa – que era Mohamed Al Mahdi – obrigaram-no à heresia. Essa dissensão o arruinou, mas antes o fez definir os artigos de uma religião pessoal, se bem que com evidentes infiltrações das pré-histórias gnósticas.

No princípio da cosmogonia de Hakim, há um Deus espectral. Essa divindade carece majestosamente de origem, assim como de nome e rosto. É um Deus imutável, mas sua imagem projetou nove sombras que, condescendendo à ação, dotaram e presidiram um primeiro céu. Dessa primeira coroa demiúrgica procedeu uma segunda, também com anjos, potestades e tronos, e estes fundaram outro céu mais baixo, que era a réplica exata do inicial. Esse segundo conclave viu-se reproduzido em um terceiro, e esse em outro inferior, e assim até 999. O senhor do céu do fundo é o que nos rege – sombra de sombras de outras sombras – e sua fração de divindade tende a zero.

A terra em que habitamos é um erro, uma incompetente paródia. Os espelhos e a paternidade são abomináveis, porque a multiplicam e afirmam. O asco é a virtude fundamental. Duas disciplinas (cuja escolha deixava livre o profeta) podem conduzir-nos a ela: a abstinência e o excesso, a luxúria ou a castidade.

O paraíso e o inferno de Hakim não eram menos desesperados. "Aos que negam a Palavra, aos que negam o Véu Incrustado e o Rosto (diz uma imprecação que se conserva da Rosa Escondida) prometo um Inferno maravilhoso, porque cada um deles reinará sobre 999 impérios de fogo, e em cada império 999 montes de fogo, e em cada monte 999 torres de fogo, e em cada torre 999 soalhos de fogo, e em cada andar 999 leitos de fogo, e em cada leito estará ele e 999 formas de fogo (que terão seu rosto e sua voz) o torturarão para sempre." Em outro lugar corrobora: "Aqui na vida padeceis em um corpo; na morte e na Retribuição, em inumeráveis". O paraíso é menos concreto. "Sempre é noite e há pilares de pedra, e a felicidade desse paraíso é a felicidade peculiar das despedidas, da renúncia e dos que sabem que dormem."

O ROSTO

No ano 163 da Hégira e quinto do Rosto Resplandecente, Hakim foi cercado em Sanã pelo exército do Califa. Provisões e mártires não faltavam, e se aguardava o iminente socorro de uma caterva de anjos da luz. Nisso estavam, quando um espantoso rumor atravessou o castelo. Contava-se que uma mulher adúltera do harém, ao ser estrangulada pelos eunucos, havia gritado que à mão direita do Profeta faltava o dedo anular e que careciam de unhas os outros. O rumor espalhou-se entre os fiéis. Em pleno sol, de um elevado terraço, Hakim pedia uma vitória ou um sinal à divindade familiar. Com a cabeça baixa, servil – como se corressem contra a chuva -, dois capitães lhe arrancaram o Véu recamado de pedras.

Primeiro houve um calafrio. O prometido rosto do Apóstolo, o rosto que havia estado nos céus, era de fato branco, mas da brancura peculiar à lepra manchada. Era tão volumoso ou inacreditável que parecia uma máscara. Não tinha sobrancelhas; a pálpebra inferior do olho direito pendia sobre a bochecha senil; uma pesada cepa de tubérculos comia-lhe os lábios; o nariz inumano e achatado como de um leão.

A voz de Hakim ensaiou uma mentira final. "Vosso pecado abominável vos proíbe de perceber meu esplendor...", começou a dizer.

Não o escutaram e atravessaram-no com as lanças.

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