quarta-feira, 14 de outubro de 2009

“NOVELA LITERÁRIA” NO BLOG: “A HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIA” DE JORGE LUIS BORGES II

Na primeira parte de “NOVELA LITERÁRIA” DO BLOG vocês foram convidados a ler o livro “A HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIA” de JORGE LUIS BORGES, com o primeiro conto 'ATROZ REDENTOR LAZARUS MORELL", agora acabo de blogar a seguda parte deste conto:

O ATROZ REDENTOR LAZARUS MORELL - Segunda Parte

O HOMEM
Os daguerreótipos de Morell, que costumam publicar as revistas americanas, não são autênticos. Essa carência de genuínas efígies de homem tão memorável e famoso não deve ser casual. E verossímil supor que Morell se tenha negado à placa polida; essencialmente para não deixar inúteis rastros e, de passagem, para alimentar seu mistério... Sabemos contudo que não foi favorecido quando jovem e os olhos demasiado próximos e os lábios finos não predispunham a seu favor. Os anos, porém, conferiram-lhe essa peculiar majestade que têm os canalhas encanecidos, os facínoras venturosos e impunes. Era um antigo cavalheiro do Sul, apesar da infância miserável e da vida afrontosa. Não desconhecia as Escrituras e pregava com singular convicção. "Eu vi Lazarus Morell no púlpito " – anota o dono de uma casa de jogo em Baton Rouge, Louisiana – "e escutei suas palavras edificantes e vi lágrimas acudirem a seus olhos. Sabia que era adúltero, ladrão de negros e assassino perante o Senhor, mas também meus olhos choraram."
Outro bom testemunho dessas efusões sagradas é o que subministra o próprio Morell. "Abri ao acaso a Bíblia, dei com um conveniente versículo de São Paulo e preguei uma hora e vinte minutos. Tampouco desperdiçaram esse tempo Crenshaw e os companheiros, porque levaram com eles todos os cavalos do auditório. Nós os vendemos no Estado de Arkansas, a não ser um baio muito brioso que reservei para meu uso particular. Agradava também a Crenshaw, mas eu fiz ver a ele que não lhe servia."


O MÉTODO
Os cavalos roubados em um Estado e vendidos em outro foram apenas uma digressão na carreira delinqüente de Morell, porém prefiguraram o método que agora lhe assegura seu lugar privilegiado em uma História Universal da Infâmia. Esse método é único, não só pelas circunstâncias sui generis que o determinaram, como também pela abjeção que requer, pelo fatal manejo da esperança e pelo desenvolvimento gradual, semelhante à atroz evolução de um pesadelo. A1 Capone e Bugs Moran operam com ilustres capitais e com metralhadoras servis numa grande cidade, porém seu negócio é vulgar. Disputam-se um monopólio, e isso é tudo... Quanto a número de homens, Morell chegou a comandar uns mil, todos juramentados. Duzentos integravam o Alto Conselho, e este promulgava as ordens que os restantes oitocentos cumpriam. O risco recaía nos subalternos. Em caso de rebelião, eram entregues à Justiça ou arrojados à correnteza do rio de águas pesadas, com uma pedra presa nos pés. Eram, com freqüência, mulatos. Sua facinorosa missão era a seguinte:
Percorriam – com algum momentâneo luxo de anéis, para inspirar respeito – as vastas plantações do Sul. Escolhiam um negro infeliz e propunham-lhe a liberdade. Diziam-lhe que fugisse de seu senhor, para ser vendido por eles uma segunda vez, em alguma propriedade distante. Dar-lhe-iam então uma percentagem do preço de sua venda e lhe facultariam a próxima evasão. Iriam conduzi-lo, afinal, a um Estado abolicionista. Dinheiro e liberdade, dólares de prata bem sonantes e liberdade, que maior tentação podiam oferecer-lhes? O escravo atrevia-se a sua primeira fuga.
O caminho natural era o rio. Uma canoa, o porão de um vapor, uma barcaça, uma balsa grande como o céu, tendo na extremidade uma cabana ou tendas de lona muito altas; o lugar não importava, importava apenas saber-se em movimento e seguro sobre o infatigável rio... Vendiam-no em outra plantação. Fugia outra vez para os canaviais ou barrancos. Então, os terríveis benfeitores (dos quais já começava a desconfiar) aduziam gastos obscuros e declaravam que tinham de vendê-lo uma última vez. Ao regressar dariam a ele a percentagem das duas vendas e a liberdade. O homem deixava-se vender, trabalhava algum tempo e desafiava na última fuga o risco dos cães de caça e dos açoites. Regressava com sangue, com suor, com desespero e com sono.


A LIBERDADE FINAL
Falta considerar o aspecto jurídico desses fatos. O negro não era posto à venda pelos sicários de Morell antes que o dono primitivo houvesse denunciado sua fuga e oferecido uma recompensa a quem o encontrasse. Quem quer que fosse podia então retê-lo, de modo que sua venda posterior era abuso de confiança, não roubo. Recorrer à justiça civil era gasto inútil, porque os danos não eram pagos nunca.
Tudo isso era muito tranqüilizador, mas não para sempre. O negro podia falar; o negro, de puro agradecimento ou infelicidade, era capaz de falar. Umas rodadas de uísque de centeio no prostíbulo de El Cairo, Illinois, onde o filho de uma cadela nascido escravo iria malgastar o dinheiro que eles não lhe tinham de dar, e transpirava o segredo. Nesses anos um Partido Abolicionista agitava o Norte, uma turba de loucos perigosos que negavam a propriedade e pregavam a liberdade dos negros, incitando-os a fugir. Morell não ia deixar-se confundir por tais anarquistas. Não era um yankee, era um homem branco do Sul, filho e neto de brancos, e esperava retirar-se dos negócios e ser um cavalheiro, com léguas de algodoal e as curvadas filas de escravos. Com sua experiência, não estava para riscos inúteis.
O trânsfuga esperava a liberdade. Então os mulatos nebulosos de Lazarus Morell transmitiam entre si uma ordem que podia não passar de uma senha e o livravam da vista, do ouvido, do tato, do dia, da infâmia, do tempo, dos benfeitores, da misericórdia, do ar, dos cachorros, do universo, da esperança, do suor e dele mesmo. Um balaço, uma punhalada baixa ou um golpe, e as tartarugas e pargos do Mississipi recebiam a última informação.

Na sequencia a conclusão do conto com os capítulos finais deste conto: A CATÁSTROFE e A INTERRUPÇÃO.
Quem não leu a primeira parte do conto acesse:

A PARTIR DE HOJE, ALEM DAS ANALISES, TEM “NOVELA LITERÁRIA” NO BLOG E A PRIMEIRA É “A HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIA” DE JORGE LUIS BORGES. CURTAM.

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